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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Aventuras e Desventuras da Rota Jacobina (cap. 2)

 


Fazer o Caminho de Compostela também é fazer turismo. As cidades pelas quais passamos são ricas de história e de monumentos, e maravilhosamente bem preservadas. O governo espanhol soube tirar partido desta rota de peregrinação que há séculos atravessa esta região do país, desde os Pirineus até Portugal. Alguns trechos da rota que estavam em pior estado de conservação foram deslocados nos últimos anos para passar ao longo da estrada, à revelia do desejo dos peregrinos. Deste modo, os viajantes de carro veem de relance esse povo exótico e obstinado que caminha dia após dia, faça sol ou faça chuva, repetindo um ato secular que se iniciou em 950, o ano em que o arcebispo Le Puy partiu de Aquitânia com uma grande comitiva para fazer o caminho. No encalço de Le Puy, vieram o desenvolvimento econômico da região ao longo da rota e o hábito bizarro dos mais afortunados de pagar um pobre coitado para percorrer a pé os mais de 720 quilômetros e deste modo obter o perdão divino dos pecados  do pagante e assim garantir uma cadeirinha no céu.

 

 

 

Nos tempos de hoje, em que fazer o caminho não é mais sinônimo de risco de morte ou assalto, os peregrinos podem se dar ao luxo de ter uma vida noturna intensa. Aqueles que estão caminhando já a mais tempo, participam dela com menor intensidade. Mas os europeus que tiram uma semana por ano para fazer um trecho do caminho, e aqueles que caminham sem carregar sua carga ou dormir nos albergues, estão cheios de energia para dar e vender. Bebem muito, dormem tarde e, se o desejo for forte, alguns ainda tentarão roubar alguns momentos de intimidade com seus parceiros, para o desespero completo dos peregrinos que dividem o mesmo quarto e querem dormir. Dormir em albergue não é para fracos. Mas o pior de tudo sem dúvida são o cheiro de chulé e os roncos.

 

Ao fim dos dez primeiros dias de caminhada, eu já estava com o aspecto meio enxovalhado. Minha roupa, lavada à noite durante a hora do banho, seguia pendurada com prendedores de roupa na mochila para secar ao vento enquanto eu caminhava. A esta altura, nós que seguíamos caminhando no mesmo ritmo, já conhecíamos a roupa de baixo uns dos outros. Não há elegância no reino da peregrinação!

 

Logo nos primeiros dias, conheci Frédéric, um francês muito bonito e gentil. Ele era obcecado pela Bolsa de Valores, ou seja, nada espiritual. Mas logo fizemos amizade e começamos a caminhar juntos. Poucos dias depois, uma alemãzinha se juntou a nós. Rahel era do tipo artístico, adorava desenhar. Seguido esbarrávamos nela, sentada em algum ponto do caminho com ar sonhador, seu imenso estojo de canetas hidrocor aberto no colo. Acho que nunca a vi tirar uma foto. Rahel ainda era estudante e vivia de uma bolsa de estudos, contudo um dia me surpreendeu ao perguntar se eu conhecia uma boa entidade de caridade no Brasil. Ela gostaria de fazer uma doação. Eu tive de confessar muito sem graça que não conhecia, nem boa, nem má.

 

Eis que um dia eu ouço alguém comentar que Mara, uma amiga do Rio de Janeiro que eu havia conhecido nas palestras sobre o caminho que ocorriam no Clube de Espanha, estava um dia de caminhada à minha frente. Decidi acelerar o passo para encontrá-la e fiz o equivalente a dois dias de caminhada em um só. Isto me ensinou uma nova lição: o corpo tem limites. Nem tudo o que a nossa cabeça deseja faz bem ao corpo. Desse modo pude encontrá-la, mas como tive que ficar dois dias parada no albergue para me recuperar de uma crise de tendinite causada pelo excesso de esforço, a perdi novamente.

 

Mara fazia parte de um grupo de quatro caminhantes que seguiam sempre juntos. Como eles andavam mais devagar do que eu, logo eu viria a encontrá-los novamente. Mas ao invés de sentir prazer por rever esta amiga, acabei tendo uma decepção. Reparei que o quarto onde eles dormiam estava sempre anomalamente vazio. Logo descobri que ao chegar no dormitório, eles fechavam a porta do quarto que ocupavam e diziam aos demais que já estava lotado. A peregrinação por si só não torna ninguém melhor, é preciso querer aprender as lições nas quais tropeçamos pelo caminho. E saber compartilhar é uma das lições básicas para quem dorme em albergue.

 

Decepcionada, retornei ao meu velho lema: nessa vida, nascemos, vivemos e morremos sós. Se por alguma graça de Deus, você descobrir uma pessoa com a qual é possível compartilhar os bons momentos, sejam de amor ou de amizade, deve-se agradecer aos céus por essa dádiva e tratar esse alguém de modo muito especial. Mas ali, à beira do caminho, nos arredores de Burgos, eu descobriria uma prova de que essa dádiva não é dada a todos: a tumba dos reis Juan II de Castilla e Isabel de Portugal na Cartuja de Miraflores. Reza a lenda que esse casal vivia brigando. Eles foram eternizados pelo escultor em seu sepulcro de mármore deitados lado a lado, porém olhando para lados opostos!

 

Retomei meu caminho solitária e, para minha sorte, fui recebida de braços abertos pelos meus novos-velhos amigos, Frédéric e Rahel, que perdoaram o meu abandono temporário. A essa altura o meu corpo já funcionava como uma máquina bem azeitada. Nada doía, a mochila se tornara leve, a comida era farta, deliciosa e bem digerida, o vinho não dava dor de cabeça e os caminhantes que seguiam no mesmo passo eram bons companheiros de copo e de conversa. Mas o ronco... Comecei a dormir uma noite ou outra em um pequeno hotel para escapar da serenata de roncos do albergue e poder repor as minhas energias.

 

A passagem pelos pequenos vilarejos era plena de atrativos. As tascas espanholas, com suas cortinas de franja plástica para impedir a entrada de moscas, eram um excelente abrigo para as horas de sol mais forte, quando se tornava impossível caminhar. Parávamos então para tomar um vinho e comer um presunto cru, que o dono da tasca cortava em fatias bem finas do pernil exposto sobre o balcão. A hora da siestapassávamos deitados à sombra de uma árvore ou de um rolo de feno deixado no campo. Os vilarejos estavam quase sempre desertos, especialmente se fosse no início da tarde. Porém, numa das vezes, cruzamos com duas senhoras muito sisudas, todas vestidas de preto que brigavam enquanto varriam a calçada em frente às suas casas. Lá pelas tantas, no calor da briga, as vassouras foram jogadas no chão e uma dela se virou de costas para a outra e agitou suas saias, expondo o traseiro, nu em pelo, como total prova de desprezo pela vizinha. Ante aquela cena hilária, nós três caímos na gargalhada e tivemos de sair correndo, pois a velhinha exibicionista logo recuperou a sua vassoura e saiu em nosso encalço brandindo ela no ar.

 

À medida que o mês de setembro avançava, o ar mudava lentamente. O tempo logo ficaria fresco e chuvoso ao entrarmos na Galícia. À essa altura já tínhamos feito dois terços do caminho e os ânimos se apaziguavam. Mas as aventuras do final do caminho vou deixar para te contar no próximo capítulo.

 

(Fim do segundo capítulo)

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Tags: limites do corpoamizadecompartilhamentoroncos

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