Encontros e Desencontros (Brava Gente Açoriana IV)

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“Ôu!”, gritou Cosme após nove dias de viagem de carreta, quando a parelha de bois que vinha encangada finalmente chegou ao seu destino, após percorrer 150 km em caminhos de terra desde o Desterro. O boi malhado, de caráter teimoso e rebelde, vinha com o couro todo furado pelas espetadas que o escravo lhe dava com uma vara longa na extremidade da qual havia um objeto pontudo de metal, na tentativa de fazê-lo andar no mesmo passo do seu companheiro de canga. Não era apenas o caráter do boi que havia dificultado a viagem, mas também o mau-humor de Cosme, que, muito à contragosto, havia deixado a sua família para trás para acompanhar Francisco nesta empreitada. “Mas que terras são essas, Cosme! Isso é uma selva! Não há nem capim para as vacas pastarem. Isso aqui nunca foi cultivado ou serviu de pasto na história curta deste Brasil. Vem, vamos nos apresentar aos vizinhos mais próximos e ver o que podemos conseguir com eles”.
Francisco vinha com uma carta de apresentação escrita pelo governador do Desterro. Nela, era solicitado que os vizinhos de Francisco o ajudassem a se instalar em sua nova terra doada pela coroa portuguesa. Assim, enquanto as doze cabeças de gado foram deixadas nas terras vizinhas para se recuperarem da longa jornada, um grupo de colonos auxiliou na construção de uma palhoça que iria servir para abrigar Francisco e Cosme, junto às sementes e as ferramentas que haviam sido trazidas por eles. A construção da sua casa de taipa e pau-a-pique teria de aguardar o término das colheitas, quando então os vizinhos estariam livres para ajudá-los a erguer sua nova morada. Cosme e Francisco logo começaram a trabalhar ombro a ombro nas queimadas e na preparação da terra com o arado para que fosse possível dar início às plantações. No entanto, como Francisco não estava acostumado ao trabalho pesado da terra, o trabalho rendia pouco e os víveres que eles haviam trazido para o seu sustento nos primeiros tempos começaram a diminuir perigosamente.
Dois anos após tomar posse de suas terras, Francisco já tinha enfrentado vários problemas: um ciclone havia deixado sua palhoça sem cobertura, e, consequentemente, várias sacas de sementes tinham se perdido devido às chuvas torrenciais; boa parte da segunda colheita tinha se perdido devido a uma seca, e Cosme, longe de sua família, tinha entrado em depressão e agora passava os dias bebendo cachaça ao invés de se dedicar à lavoura. Francisco passara a sobreviver apenas de uma agricultura de subsistência. Todas essas tristes notícias foram enviadas por carta a Alda Maria e seu pai, Don Antônio, avisando que o casamento teria de ser adiado. Deprimido, e completamente abandonado nos confins de Santa Catarina, Francisco se sentia enganado pelo destino.
Neste meio tempo, a situação econômica na ilha de Picos tinha piorado seriamente, levando a maior parte das famílias de colonos à miséria. Contudo, a situação dos imigrantes portugueses no Brasil era tão precária, e o risco de morte na travessia à bordo das galeras era tão elevado, que a maior parte dos colonos de Picos se negava à emigrar. Manuel, o amigo de infância de Francisco, que trabalhava como capataz nas terras de seu pai, fora enviado à prisão em 1753, pois fora pego em flagrante roubando um frango de seu patrão para alimentar seus pais. Ele acabou ficando preso por três anos, apesar de ter cometido um delito pequeno, como era o caso da maior parte dos seus companheiros de cárcere. E teria ficado preso por ainda mais tempo, se um novo edital não tivesse sido publicado. Como o número de portugueses interessados em emigrar para o Brasil era pequeno, o rei ordenou que boa parte dos presidiários recebesse a pena do Degredo, sendo obrigada a emigrar em troca de sua liberdade. "Manuel você está livre. O rei perdoou o seu crime e você pode finalmente sair da prisão. Mas você vai ter de emigrar para o Brasil, como parte do grupo de colonos que está indo se instalar no Sul. Voce deve partir na próxima galera, que sai no final de setembro. Vá se despedir de sua família, pois provavelmente voce nunca mais voltará a vê-los". Manuel fez parte da última leva de emigrantes, que foi enviada em 1756 para o Brasil.
Durante a travessia do Atlântico, Manuel se enamorou de Maria de Lurdes, a filha mais velha de uma família da Ilha de Faial, que viajava junto com seus pais e irmãos. Manuel procurava acalmar o desejo de encontrar com sua amada e ocupar seu tempo livre esculpindo um pedaço de osso de baleia, uma vez que os dois viajavam em partes separadas do navio. Essa escultura ele pretendia dar aos pais de Maria de Lurdes no dia em que pedisse a sua mão em casamento. Ela, por sua vez, passava os dias na companhia de sua mãe e das outras mulheres que tinha conhecido à bordo, fazendo trabalhos manuais para o seu enxoval. Porém, quase toda a família da moça adoeceu quando uma epidemia de tifo atingiu os passageiros, que vinham pior acomodados do que os escravos que viajavam junto na galera. "Por favor nos dê licença para cuidarmos dos homens de nossa família. Soubemos que eles estão muito doentes. Já faz alguns dias que não vemos meu pai subir ao convés do navio. Minha mãe está desesperada com esta situação". Mas o capitão do navio não se sensibilizou com as súplicas de Maria de Lurdes, pois temia que a epidemia se alastrasse ainda mais.
Ao final da viagem, grande parte dos passageiros havia morrido e, da família de Maria de Lurdes, apenas ela e sua mãe permaneciam vivas. Antes que o navio chegasse ao seu destino, todos os passageiros já sabiam que ela e sua mãe ficariam no Desterro, onde as condições de vida eram mais adequadas para mulheres desacompanhadas. “Não se preocupe, Maria, pois logo que eu tomar posse de minhas terras e estiver assentado, virei te buscar no Desterro para nos casarmos e te levarei comigo para o nosso novo lar”, Manuel propôs a ela quando a tripulação da galera avistou a terra.
Ao chegarem ao Desterro, os cabeças de família e os homens solteiros foram organizados em milícias, formadas cada uma por 50 indivíduos e um capitão. Além de serem colonizadores, eles participariam da proteção das terras do sul do país contra a invasão dos espanhóis. Todos os degredados, incluindo Manuel, foram forçados a seguir viagem para a Província do Rio Grande de São Pedro. Como forma de amenizar esta mudança à contragosto, o rei garantia a subsistência dos colonos assentados em suas novas terras no Rio Grande durante o primeiro ano de vida, entregando farinha, peixe seco e armas de fogo a todos eles. Desesperado pela mudança de planos de última hora, Manuel prometeu a Maria de Lurdes que enviaria uma carta logo que tivesse novidades, avisando-a como eles fariam para afinal ficarem juntos. “Talvez você pudesse viajar para o Rio Grande junto com a próxima leva de colonos que for para o sul, para que nós nos casemos lá. O que você acha?”. Mas a mãe de Maria de Lurdes, apavorada por esta proposta descabida, puxou a filha para junto do grupo de mulheres que aguardava que o seu destino fosse definido pelo governador do Desterro, interrompendo as despedidas dos dois jovens. "Daqui, você só sai casada", lhe disse sua mãe entre dentes, enquanto enfiava com força os dedos em seus braços e a arrastava pela rua.
Quando Manuel chegou ao Rio Grande, ele viu que as famílias assentadas no sul viviam em meio a uma pobreza extrema. A Villa de Rio Grande, para onde ele foi enviado, era cercada por uma selva horrível e emaranhada, na qual se abrigavam papagaios e onças ferozes. Nas palhoças miseráveis, os assentos das cadeiras eram recobertos por peles de onça, ali expostas como um troféu, símbolo da valentia de seus donos no combate às feras. Mesmo o governador morava em uma casa com teto de palha. Dunas de areia, trazidas pelos ventos fortes que sopravam nestas bandas, se apoiavam contra as paredes das casas voltadas para o sul. Logo ao lado da Villa do Rio Grande, se estendia à perder de vista uma praia muito reta e de areias finas, batida por ondas fortes de um mar marrom. Tudo tinha um ar de desolação. A miséria era tão grande que os noivos que ali vivam não tinham como pagar as taxas eclesiásticas e, ao invés de se casarem, preferiam viver amancebados. Quando a mãe de Maria de Lurdes ficou sabendo de como era a vida lá no Sul, ela se opôs fortemente ao casamento de sua filha com Manuel, que além de tudo, era um degredado! Pouco tempo depois ele ficou sabendo que ela havia se casado com um viúvo, pai de três filhos, proprietário de um armazém lá no Desterro.
Francisco, após passar alguns anos lutando contra as dificuldades de sua nova vida no interior de Santa Catarina, acabou adoecendo do pulmão. Este foi o golpe de misericórdia que o fez largar tudo para trás e voltar para o Desterro, em busca de tratamento médico. Uma vez curado, ele se casou com Alda Maria, a filha de seu ilustre anfitrião, em uma cerimônia para a qual todas as pessoas importantes da região foram convidadas. Logo em seguida, ele aceitava o cargo de capitão do exército, que seu sogro conseguiu para ele. Embora estivesse satisfeito com sua nova vida de militar e de casado, ele pleiteou junto ao rei que suas terras situadas no interior de Santa Catarina, fossem trocadas por estâncias no Rio Grande. Esta troca era possível uma vez que o rei acenava aos colonos com a promessa de doação de terras maiores no Rio Grande, como forma de atrair gente para esta província mais perigosa, situada no âmago das disputas por território com os espanhóis.
Manuel, apesar das imensas dificuldades que enfrentou nos primeiros anos, acabou tendo sucesso na plantação de cereais e na criação do gado, pois era um homem acostumado ao trabalho pesado e persistente. Sete anos após a sua chegada, ele já possuía uma fazenda autossuficiente. Ele contornava a escassez de mão de obra na época das colheitas contando com a ajuda dos colonos assentados nas terras vizinhas. “Manuel, está na hora de você arrumar uma esposa e providenciar umas crias, para que no futuro você tenha ajuda na lida com a terra. A solidão não faz bem para ninguém, homem. Aqui todo mundo te respeita e te dá valor. Vai ser fácil achar alguém que queira casar contigo”. "Calma, homem. Tudo virá a seu tempo. Nunca se sabe que voltas o destino planeja para nós", respondeu Manuel. Ele era um homem que tinha passado por experiências muito duras em sua vida e tinha medo de amarrar o seu destino ao de uma mulher, e com isto condená-la a um futuro incerto.
Apesar do sucesso relativo de Manuel, a situação da maioria dos colonos açorianos ainda continuava crítica na década de 1760, pois o rei seguia ignorando as reclamações vindas das colônias, bem como os relatos de seus ministros. No auge da crise, os casais de açorianos, revoltados com a inércia do rei, começaram a praticar atos de depredação. Em 1763, quando os espanhóis invadiram a Villa de Rio Grande, os açorianos aproveitaram a confusão e saquearam o Armazém das Farinhas, além de roubar arreios, armas e lonas.
Por ocasião da invasão espanhola, Francisco foi convocado a participar da guerra que estava ocorrendo no Rio Grande e apaziguar a revolta dos colonos. Animado com a convocação, Francisco deixou Alda Maria no Desterro e viajou com suas tropas para o sul. A vida de casado começava a entediá-lo. Alda Maria, que no início do casamento era uma mulher doce e apaixonada, agora vivia se lamuriando pelos cantos da casa, reclamando em voz alta da infidelidade dele. Nos dez anos que se passaram desde que eles haviam se conhecido, ela havia perdido todo o viço da juventude, e Deus não lhe dera em troca a benção de ser mãe. “Que pecados esta mulher terá cometido para que Deus nos castigasse com a falta de filhos?”, era o pensamento que obcecava Francisco. Mas estes pensamentos eram esquecidos assim que ele encontrava seus companheiros do exército para beber e festejar com as raparigas nas tabernas do Desterro. Ele, que outrora fora um rapaz tão bonito, agora estava barrigudo e com as feições macilentas de quem bebe muito e leva uma vida desregrada.
Nesta ocasião, Manuel e os demais compatriotas que haviam chegado com ele de navio foram convocados para reintegrar as milicias criadas no momento do seu desembarque. Estas milícias se juntaram ao exército na luta contra os espanhóis. E foi no calor da luta pela defesa de Villa de Rio Grande das mãos inimigas que Manuel e Francisco se reencontraram pela primeira vez em 15 anos. “Mas que milagre é este, meu Deus? Será que morri nesta escaramuça e agora estou tendo visões? Manuel, meu grande amigo, você veio me receber nas portas do Paraíso? Que felicidade, meu irmão! Mas saiba que ao invés de você, eu preferia ser recebido pelas 72 donzelas puras do Paraíso de Alá”, Francisco exclamou em altos brados, com seus braços lançados para o alto, em meio ao campo de batalha. Rindo, Manuel lhe respondeu que “Para que isto fosse possível, você teria de trocar de religião e morrer solteiro. Mas pela aliança que brilha em sua mão, vejo que agora és um respeitável homem casado, quiçá um pai de família”. Os dois amigos então se abraçaram e saíram juntos do palco das lutas em direção ao acampamento dos soldados. Com o cair da noite, as lutas tinham cessado e agora era chegada a hora de botar a conversa em dia. No dia seguinte, os dois voltariam a lutar lado a lado pelos domínios do seu rei, embora seus atos não o tornassem merecedor de tanta dedicação de seus súditos.
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