A vida curta de um desejo
Neste conto você vai ler sobre as peripécias de uma mulher que tenta realizar o seu antigo desejo de comprar uma casa na serra e encontra seres sobrenaturais na mata nativa que a cerca. Será que a realização desse sonho a fará feliz?
Tem desejos que a gente não sabe de onde vieram, nem se são bons para nós. São fruto do amadurecimento de nossos gostos e das experiências que tivemos em vida? Podem ser descartados facilmente? Você lembra daquela propaganda que dizia “Uno, você ainda vai ter um”? O Uno, me lembro bem, era um carrinho feio e acanhado, certamente a Fiat não acreditava que ele poderia ser o sonho de consumo de toda uma geração. Aquela propaganda do Uno mais parecia uma praga que a equipe de marketing estava jogando sobre nós. Ela não admitia o nosso livre arbítrio. Parecia acreditar que nossos desejos não nos pertenciam, que poderiam ser moldados a seu bel-prazer.
Quando neste fim de semana peguei a estrada no intuito de correr atrás de meus desejos, tinha me esquecido daquela propaganda do Uno. Subia a estrada sinuosa da serra em meu possante, a cabeça ocupada pelo sonho de comprar uma casinha no meio do mato. Já havia feito a escolha da casa pelos aplicativos de compra e venda de imóveis da internet e uma reserva para hospedagem nela por um fim de semana, pois ela atualmente podia ser alugada na plataforma Airbnb. Durante os próximos dois dias, eu me certificaria de que ela era a casa de meus sonhos.
Vi que a propriedade se localizava em um loteamento antigo, com ruas de paralelepípedos e casas parcialmente encobertas por uma mata nativa preservada, tudo com um aspecto meio selvagem e tranquilo. Após alguns minutos, encontrei a empresa de segurança do bairro, onde solicitei que desligassem o alarme da casa e entregassem sua chave.
Quando cheguei em frente ao portão do lote, reparei que a casa parecia uma ilha de luz em meio à uma mata de bromélias, camboatã-vermelho e pés de pitangueira. No terreno vizinho, ainda desocupado, identifiquei um pé de canela-sassafrás que se erguia altivo junto à cerca, me lembrando das cachaças perfumadas de meus tempos de universitária. Apesar do frescor do dia, a casa estava aquecida pela luz do sol que filtrava por entre as folhas das árvores e inundava a sala pelas vidraças amplas. A casa parecia um recanto mágico suspenso no tempo e no espaço.
Larguei as malas no quarto e comecei imediatamente a fazer uma vistoria das suas instalações. Que sorte que aquele era o dia do solstício de verão, o dia mais longo do ano! Eu teria tempo suficiente para verificar todos os recantos. Ao final de algumas horas, concluí que a casa estava perfeita: não havia manchas de umidade, a água corria abundante pelos canos, a madeira estava livre de cupins e caruncho. Os móveis eram de bom gosto e a casa toda mostrava sinais de pertencer a um proprietário cuidadoso. “Deve ser aquele que aparece nas fotos penduradas na parede”, me disse baixinho, enquanto me aproximava para admirar os retratos que decoravam o canto da sala. Numa delas, um casal de meia-idade posava para a foto vestido com trajes típicos do séc. XIX da região da Alemanha onde se situa a Floresta Negra. Reparei na qualidade das roupas, que mais pareciam réplicas perfeitas das exibidas em um museu: o chapéu de palha com abas largas e borlas de lã que decorava a cabeça da mulher, o chapéu de feltro preto do homem, as roupas de tecido pesado decoradas por fitas e as meias brancas que cobriam inteiramente as pernas. Você deve estar pensando como diabos eu conheço os trajes típicos da região de Alto Baden, não é mesmo? Mas isso é uma longa história que posso te contar outra hora.
Só me dei conta de quanto tempo havia passado, quando a escuridão invadiu a casa e os carros dos moradores dos lotes colina acima começaram a desfilar em frente ao portão. Era hora de todos voltarem para o aconchego do lar. Resolvi me vestir com esmero, preparar uma macarronada, abrir um vinho e acender a lareira da casa. Tudo estava pronto para uma primeira noite em alto estilo na minha futura casa. O conteúdo da taça já ia pela metade quando reparei em um enxame de luzinhas voejando pelo pátio. “Meu Deus! A quantas décadas eu não via vagalumes!”, exclamei exaltada, abandonando minha refeição e saindo para caminhar pelo terreno. Era uma noite escura, em que a mata sussurrava seus segredos aos ouvidos atentos. Apesar de ser incapaz de compreender a linguagem da natureza, o pio dos pássaros, o cricrilar dos grilos e o coaxar dos sapos me induziram a um estado de relaxamento que há muito tempo eu não experimentava.
Enquanto perambulava pelo terreno, sonhava de olhos abertos com as pequenas transformações que faria. Certamente eu teria de pendurar uma rede entre duas árvores, mas quais? Meus olhos percorriam o terreno em busca do local ideal quando esbarraram em uma figura fugaz que caminhava meio encoberta pelos ramos dos arbustos. Ela portava um chapéu de palha de copa alta e dura cercada por pompons negros graúdos. Vez ou outra fazia uma breve parada e olhava para mim, como que esperando que eu a acompanhasse. Resolvi seguir seus passos e acabei me embrenhando na mata densa que fazia fronteira com o terreno. Por quanto tempo caminhei, não sei lhe dizer. Mas lembro de ter cruzado um córrego e passado por uma série de araucárias gigantes. Logo me dei conta de que estava perdida. Já começava a desesperar quando escutei uma música e risos vindos das proximidades. Era uma festa de casamento, onde todos os convivas se trajavam como aquela mulher que eu vinha seguindo. Uma verdadeira maré de pompons pretos e coloridos ondulava ao som de marchinhas.
Apesar de eu ter estudado um pouco de alemão nos tempos da escola, não conseguia entender quase nada do que diziam. Aquilo mais parecia um dialeto. Percebi que apenas a mulher que eu perseguira e seu companheiro pareciam ter notado minha presença. Ambos retribuíram meu interesse fazendo gestos para que me aproximasse, mas eu sentia meus membros pesados como se estivesse de pileque. Ao girar a cabeça, senti surgir uma vibração passageira em meus ouvidos acompanhada de uma interferência na imagem diante de meus olhos, como se alguém estivesse girando a antena da existência em busca de sintonia. Fiquei alguns minutos me movendo lentamente por aquele misterioso campo energético, tentando entender o que estava se passando. Seria efeito do vinho?
De súbito, senti que os dedos em garra da mulher se cravavam em meu antebraço. Girei o rosto, encarando-a de frente, mas seus olhos ávidos pareciam ocupados procurando um sinal qualquer em meu pescoço. Me debati em busca de alguém que pudesse me ajudar a sair daquela situação, mas tive a nítida impressão de que os demais não eram capazes de me ver. Foi então que minha algoz começou a esbravejar “Hochstapler!”* com ar colérico. Resolvi juntar as forças que me restavam para escapar dali e voltar para casa.
Percorri a esmo a floresta muda até que finalmente reencontrei seus sons e a nuvem de vagalumes. A partir de então, foi fácil encontrar o caminho de casa. Logo que pude, tranquei todas as portas e janelas a sete chaves e religuei o alarme. Embora a vibração nos ouvidos e a visão turva tivessem desaparecido e tudo apresentasse um ar de normalidade, quando eu pensava em um possível reencontro com aquele casal... Foi somente ao beber a última gota da garrafa de vinho que senti meu corpo e mente afinal relaxarem e pude conciliar o sono.
No dia seguinte acordei bem cedo com uma tremenda ressaca. Rapidamente guardei todos os meus pertences na mala e recolhi o lixo. Ao colocar a bagagem no porta-malas do carro, tive um momento de indecisão. Voltei sobre meus passos e me dirigi ao sofá da sala, lá onde estavam pendurados os retratos de família. Retirei o retrato do casal em trajes típicos de sua moldura e li a dedicatória em alemão gótico escrita em seu verso:
Querida,Receba esta foto no seu aniversário de vinte anos com a certeza de que, onde quer que esteja, estaremos ao seu lado.Ao passar pela empresa de segurança para entregar as chaves, o empregado me explicou que estava com a proprietária da casa ao telefone e que ela gostaria de falar comigo. Ela gentilmente perguntou se tudo tinha se passado bem com a hospedagem e se a casa era do meu agrado. Apesar de sua delicadeza, a minha resposta foi lacônica. Porém aproveitei a chance para perguntar quem era o casal da foto. Ela me explicou que eles eram o tataravô e a tataravó de seu marido, que viveram às margens da Floresta Negra. Os pobres coitados, disse ela, adoeceram e morreram antes do nascimento de sua neta, porém deixaram uma foto para ser entregue quando a jovem completasse 20 anos de idade. Contudo, todas as descendentes mulheres haviam morrido ainda na infância. A única a se tornar adulta havia sido sua filha. Contudo ela também morrera em um acidente às vésperas de completar 20 anos. “Ontem teria sido seu aniversário”, disse a proprietária com a voz embargada pelo choro.
Peguei a estrada com as ideias em torvelinho. Será que eu havia cruzado na mata por um portal para outra dimensão? Teria eu feito uma viagem no tempo para o século XIX e encontrado a tataravó do proprietário da casa? Histórias sobrenaturais como essa fazem parte do misticismo que envolve a Floresta Negra e seus caminhantes solitários. Mas será que eu estava interessada em ter outras experiências aterradoras como a que eu havia acabado de viver?
Ao chegar na minha residência, encontrei minha mãe separando roupas quentes e cobertores para levar para nossa futura casa na serra. Ela me perguntou ansiosa o que eu tinha achado da casa, se já havia fechado negócio. “Não, descobri que prefiro uma casa de praia”, respondi bruscamente e me tranquei em meu quarto antes que ela exigisse maiores explicações. Através da porta a escutei esbravejando - "Não sei o que foi que eu fiz para merecer uma filha assim tão volúvel” - antes de ligar a tevê a todo volume para encobrir seu choro.
*Obs: Hochstapler significa impostora, em alemão
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