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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O homem que odiava as mulheres

São três horas da madrugada quando Maria Inês acorda com o ruído das vidraças e persianas sacudidas pelo vento forte. A natureza se revolta, torce e contorce, fazendo um barulho infernal. A frente fria avança e comprime o ar ameno que vinha circulando pela cidade nos últimos dias, despertando a ira dos elementos. Em sintonia com o tempo, a mente de Maria Inês é invadida de súbito por memórias não tão recentes, raivosas. Memórias de situações em que ela deveria ter-se revoltado, como o tempo agora faz diante de seus olhos. Mas não, ela sempre escolheu ficar calada.

imbecil

- Agora não adianta virar de lado, que o sono não vai voltar tão cedo - ela se declara vencida. Decide então levantar-se e verificar se as janelas dos quartos estão bem fechadas. Seu cachorro se agita com a mudança na rotina, levanta e ensaia uma manifestação de revolta. 

- Até tu, Brutus, resolveu se rebelar hoje? - ela comenta em tom seco e autoritário. Brutus então dá meia volta e resolve segui-la pela casa, supervisionando atento cada um dos atos de sua mãe, que hoje resolveu se portar de um modo tão estranho.

O vento que invade a casa pela janela do banheiro se tornou quente e úmido e agora varre o ar lá fora em todas as direções, agitando ferozmente as copas das árvores. As palmeiras lembram gladiadores que, com os pés imóveis no chão, se desviam de golpes ante o urro da torcida enlouquecida. Luta sem fim, nem vencedor. De pé junto ao janelão da sala, Maria Inês e Brutus acompanham a cena, enquanto ela persegue obsessiva o fio da meada dos seus pensamentos. Vez ou outra ela extravasa o excesso de ira acumulada ao longo dos anos, como o vapor que escapa de uma panela tampada sobre o fogo: 

- Pobre imbecil, ele bem que podia ter perdido a chance de ser grosseiro comigo. Como pode um homem com tantos diplomas ser tão incapacitado para lidar com gente?

Maria Inês revira os armários em busca de sua agenda de trabalho. Lá ela encontra tudo registrado nos mínimos detalhes: o dia, quem estava presente com ela na sala, a hora em que ela foi chamada à sala do gerente para se explicar, e o que ele disse a ela, palavra por palavra. Mas nem precisaria disso, tudo está registrado a ferro e fogo em sua memória.

- O pior é ter escutado tudo de boca fechada. Custava ter mandado ele à merda? – ela pergunta a Brutus, que gira a cabeça para o lado ganindo baixinho, sem saber o que fazer. 

- Bom, na verdade custava sim. Mulher que reage a piadinhas no trabalho é considerada difícil e colocada de lado. Por isso é que eu sempre optei por não responder e fazer cara de paisagem. Achava que o melhor era não provocar a besta. Mas ,se naquela época eu tivesse dado uma resposta e ele, eu agora não estaria acordada e raivosa.

“Você vai ter de me explicar direitinho porque está recomendando que uma equipe desta Unidade seja enviada para uma missão na África, lá, no meio do nada. Vai ver que você está fazendo isso porque gosta de um negão!”, ela recita de olhos fechados, o dedo pousado sobre o relato registrado na agenda.

- Impressionante! Como é que ele pôde dizer aquilo sem nem ao menos fazer cara de riso. Ele falou como se dissesse a coisa mais inteligente do mundo, aprendida no curso de Técnicas de Gerenciamento Avançado – com a atenção subitamente desviada pela fome, ela interrompe a sua linha de pensamento - Hum, acho que eu preciso mastigar alguma coisa, para distrair os dentes. 

Ela se dirige à cozinha, mexe e remexe em tudo o que encontra guardado na despensa, mas nada lhe apetece. Os petiscos ou são muito calóricos, ou são muito macios. Ela sente a necessidade de morder, abafar o som dos seus pensamentos com o ruído da mastigação.

- Hum, biscoito “O Globo”, perfeito! – e, pela primeira vez naquela noite, ela sorri, enquanto observa Brutus lamber deliciado o chão cheio de farelos ao seu redor.

Aos poucos a ventania se acalma, sendo substituída por uma pancada de chuva, que traz consigo o ar fresco. Pouco mais tarde, Maria Inês abre a janela do quarto e observa deliciada o horizonte se tingir de rosa claro e azul. Ela decide então voltar para a sua cama quentinha e aproveitar mais uma hora de sono antes de ter de levantar-se para preparar o café da manhã e levar Brutus para passear na rua. Amanhã será um grande dia, e ela quer estar em plena forma para a festa para a qual foi convidada. Nela, o seu antigo chefe será homenageado pelos anos de trabalho dedicado e gerenciamento exemplar. Teve de aposentar-se às pressas, o coitado.  Ultimamente ele vinha ofendendo até os seus colegas homens...

Esta novela tem dois capítulos. Para ler o capítulo final, por favor clique aqui.

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Tags: misoginiagerenciamentopreconceito sexual

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