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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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O prazer de viajar tem história

Viajar é inegavelmente um grande prazer, embora, nos últimos anos, algumas coisas venham contribuindo de maneira crescente para ofuscar este prazer. Uma delas é viajar de avião em classe turística. Ninguém merece esta tortura. Outra coisa é a quantidade excessiva de turistas que há nos lugares mais reputados entre os viajantes e os guias de viajem. Às vezes fica difícil identificar quem são e o que fazem as pessoas do lugar. As atrações acabam se tornando cenários, mais do que recortes da vida local. 

sardinha

Porém, há uma coisa que sempre me espanta, quando converso com as pessoas sobre viagens. É que, apesar de sermos todos tão diferentes em forma, gostos e maneira de nos comportarmos, o gosto por viajar é quase universal. Poucos são os que escapam desta febre. Portanto foi com surpresa que eu reagi à descoberta de que o hábito de “viajar por prazer” é algo que se difundiu relativamente recente na nossa sociedade.

Dizem que a elite romana já cultivava este hábito há cerca de dois mil anos atrás. Graças às campanhas de expansão do Império Romano, eles possuíam um extenso território coberto por excelentes rodovias, próspero e cujos habitantes falavam a mesma língua. Perfeito para indivíduos de mentes curiosas e almas divagantes que desejassem conhecer o mundo, ou apenas relaxar à beira-mar. Há relatos de que os imperadores e os cidadãos romanos mais abastados tinham o costume de passar os verões na baía de Nápoles, à sombra do Monte Vesúvio.

Durante a Idade Média, porém, o hábito de viajar por prazer quase desapareceu, pois o estado de abandono à que as estradas foram condenadas e a escassez de tráfego fizeram com que elas se tornassem território dominado por criminosos. O grande número de bandoleiros nas estradas, fazia com que pessoas de posses precisassem viajar em grupo, sob proteção armada. Este era o caso dos reis, que desejosos de se tornarem conhecidos pelo seu povo e manterem contato com as pessoas influentes de seu reino, partiam em viagens uma a duas vezes por ano. O risco de vida para os que se aventuravam a percorrer as estradas era tão grande, que até mesmo o hábito de realizar peregrinações religiosas teve de encontrar soluções criativas para persistir. Nesta época, desenvolveu-se um comércio em torno da conquista de cadeirinhas no céu: criminosos eram libertados da prisão em troca de peregrinarem para pagar pelos pecados cometidos por aqueles que os haviam libertado.

Com o Renascimento, a tradição das elites romanas de viajar como atividade de lazer foi retomada. Datam desta época os relatos dos poetas Goethe, Lord Byron e Shelley sobre os seus tours pelo Mediterrâneo, os quais reacenderam no povo o desejo de viajar.

Mas foi apenas com a proliferação das estradas de ferro durante a Revolução Industrial que viajar de férias se tornou um hábito difundido na população. Foi então que surgiram também as primeiras agências de turismo e os pacotes de viagem, oferecendo passagens e estadias mais baratas para todos os bolsos. Os belíssimos cartazes das empresas de transporte ferroviário exibindo os destinos turísticos da época evidenciam esta mudança de hábitos da população. Enfim o proletariado tinha direito a sonhar com a possibilidade de viajar em suas férias.

trem

As viagens por mar também sofreram um impacto durante a revolução industrial, com a criação dos barcos movidos à vapor. Porém, cruzar os oceanos para viagens recreativas ou culturais continuava sendo uma atividade ao alcance exclusivo de cidadãos abastados. Quando as camadas mais simples da população viajavam de navio, era no intuito de escapar da pobreza, migrando em busca de melhores oportunidades econômicas.

Os primeiros voos comerciais surgiram no início do século XX, mas eram desconfortáveis e incapazes de cobrir longas distâncias. As viagens aéreas transatlânticas comerciais apenas surgiram no final da década de 1920, quando o balão dirigível Graf Zeppelin decolou de Friedrichshafen, na Alemanha, e pousou em Lakehurst, nos Estados Unidos, transportando 20 passageiros com muito conforto. Os mimos disponíveis aos viajantes incluíam refeições deliciosas em salões luxuosos com vista panorâmica, e cabines de passageiros com água quente nas torneiras. Esta primeira viagem durou ao todo 4 dias e 11 horas.

Mas o primeiro pacote aéreo de viagem de férias somente surgiu em 1950, quando a companhia inglesa British European Airways organizou um voo charter para levar turistas de Londres para passar férias de verão na Córsega, inaugurando a era das viagens de grupos de turistas e do turismo de massas. Porém, com a crise do petróleo de 1973, quando o preço dos combustíveis subiu vertiginosamente, o custo do transporte aéreo e terrestre tornou as viagens excessivamente caras, diminuindo a sua demanda. Para contornar esta crise, os operadores de turismo buscaram destinos mais próximos e menos caros, favorecendo o turismo interno nos países.

Com a popularização das companhias turísticas, a internacionalização das redes de hotéis e o surgimento das companhias aéreas low cost o turismo de massas decolou. Mas foi com a possibilidade de fazer viagens sob medida, planejada pelo próprio viajante utilizando sites de venda de passagens aéreas e de locação de acomodações Airbnb que o turismo de massa foi elevado a um novo patamar. Contudo, todo este crescimento do turismo de lazer nas últimas décadas se deu graças a um número expressivo de turistas que gasta muito pouco durante suas viagens, sendo que a maior parte dos ganhos econômicos da indústria do turismo fica retido nas mãos do setor aéreo, das grandes redes de hotéis, de empresas internacionais e da indústria de cruzeiros marítimos. 

Como consequência da perseguição implacável dos turistas e dos operadores de turismo por viagens de custos cada vez mais populares, floresceu um tipo de turismo considerado selvagem e invasivo pelos habitantes de vários destinos turísticos famosos, tais como Barcelona, Amsterdã, Veneza, Lisboa e Palma de Mallorca. Os habitantes destas cidades têm se revoltado contra a destruição do estilo de vida tradicional que marcava o seu dia a dia, o encarecimento da moradia, a destruição da natureza e dos seus monumentos históricos.  Os destinos turísticos agora lutam por implementar um “turismo de qualidade”, atraindo viajantes que gastem mais dinheiro, e restringindo o acesso às multidões que gastam pouco. 

Para que o turismo continue a evoluir nas próximas décadas, ele deverá atender principalmente quatro novas demandas: (1) criar práticas de turismo que minimizem o impacto ambiental, promovam a conservação cultural e apoiem as comunidades locais e (2) proporcionar ao turista experiências personalizadas que atendam aos seus interesses e preferências através de experiências imersivas, (3) adequar a infraestrutura das cidades e das acomodações às necessidades de trabalhadores nômades digitais e, finalmente, (4) adaptar as viagens ao impacto das mudanças climáticas nos destinos turísticos.

Agora é questão de aguardar para ver aonde estas mudanças vão nos levar nas nossas próximas férias.

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Tags: classe turísticazeppelinturismo de massaturismo de qualidade

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