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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Os folguedos de Madame Wang

Mulher solitária acompanha pelo olho magico e pelo barulho dos canos de água a vida amorosa animada de sua vizinha septuagenária. Será que o exemplo desta vizinha servirá para alguma coisa?

septuagenaria

Como toda quinta-feira a cada quinze dias, Aline escuta alguém sair do elevador no hall do andar onde mora. Nem precisa olhar o relógio para saber o horário: são 19:30h. A curiosidade é mais forte que o respeito pela vida alheia e ela vai pé ante pé espiar no olho mágico da porta. Lá está ele, elegante como sempre. Hoje ele veste um terno azul marinho de linho, mocassins de cor conhaque e um belo lenço de seda no pescoço. O chapéu panamá se agita impaciente em sua mão, enquanto a vizinha de Aline tarda a abrir a porta. Ela finalmente recebe seu visitante com arrulhos de pombo e gestos lânguidos que agitam seu vestido de seda como a vela de um barco navegando em mar calmo.

“Fleur de Rocaille”, diz Aline, ao reconhecer a onda de perfume que se infiltra pelas frestas de sua porta enquanto a agitação no hall enfim se acalma. “Até o perfume é de velha”. E volta ao seu posto em frente ao balcão da pia, onde se põe a picar com energia redobrada o pedaço de alcatra, as cenouras e as batatas dispostas sobre a tábua. Ela escuta então os passos do casal que sobem alvoroçados os degraus de ferro da escada caracol que leva ao terraço do apartamento luxuosos da vizinha. Logo os saltos dela ecoam sobre todo o teto do apartamento de Aline, que aumenta o volume da televisão e fecha as janelas para conseguir ouvir seus próprios pensamentos. “Merda de pombal”, ela diz após alguns minutos, se sentindo sufocada pelo calor do verão e pelo vapor das panelas. Os vidros embaçados das janelas tornam o pequeno espaço onde ela mora ainda mais insuportável. 

Após meia-hora lutando contra os nervos da alcatra e a montoeira de lixo espalhada ao seu redor, ela finalmente cobre a panela do cozido, joga as cascas pela porta da lixeira instalada na parede da cozinha e volta a abrir todas as janelas. Pela porta do balcão da sala entram uma brisa de fim de tarde de verão e o canto dos grilos do jardim do condomínio onde mora. Nesta hora, já não há crianças lá embaixo. Todos ao seu redor aproveitam o aconchego do lar neste fim de tarde, após um longo dia dedicado ao trabalho e aos esportes. Os sons alegres do reencontro das famílias, dos festejos caseiros de aniversário e das disputas entre os pequenos atravessam as paredes indiscretas do prédio. Aline faz um muxoxo e seus olhos vagueiam pela peça à procura do controle remoto da tevê. Quando ela finalmente o encontra, já perdeu a vontade.

Aline se aproxima do gradil de ferro do balcão. O som das taças de vinho se chocando contra a mesa do terraço acima e o riso cristalino de Madame Wang chegam com clareza, acompanhados do tilintar dos talheres contra a louça. “Já estão jantando tão cedo? Será que ela contrata um serviço de catering para providenciar a janta? Não consigo imaginar esta mulher tão chique fedendo a fritura justo no dia de encontrar seu amante”, ela diz para si mesma. Resolve então abrir a garrafa de vinho branco que guarda na geladeira. O cozido já não lhe apetece, preferia algo mais leve em um dia quente como esse, algo próprio para um jantar romântico.

“Um jantar romântico...Nossa, faz tanto tempo desde a última vez que eu já nem saberia mais como me comportar”, murmura com a voz empastada. Beber uma garrafa de vinho com o estômago vazio não foi uma boa ideia e ela agora paga o preço de uma dor de cabeça nascente. Então se dá conta de que os canos que percorrem descobertos o teto do seu apartamento começaram a roncar com a passagem de água para o apartamento da vizinha. Quando o barulho da água parecia não mais querer terminar, ele finalmente cessa apenas para ser substituído por outro ainda mais perturbador: o motor da banheira de hidromassagem dela. Aline então ergue a sua taça em um brinde, os olhos colados no teto da cozinha, no ponto exato de onde vem o barulho do motor.

“Para que daqui a 30 anos eu consiga curtir a vida como Madame Wang, é preciso que algo mude na minha vida atual”, ela fala em voz alta para as paredes. Num movimento decidido, abre a porta do armário do banheiro, e procura afobada pela caixinha de remédios. Finalmente acha os comprimidos de paracetamol e engole um deles. Coloca o resto da cartela na bolsa. Troca a roupa de ficar em casa por uma saia curta e uma blusa decotada, e sai batendo a porta de casa. A noite ainda é uma criança e tudo pode acontecer.

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Tags: sexo na terceira idadeinvejacomo viver bemtarde de verão

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