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Se você se preocupa em saber quais histórias são verdadeiras e quais são ficção, lembre-se de que a história muda conforme aquele que a conta, pois todas elas sempre carregam algo de verdadeiro e muito da fantasia do escritor. Afinal, neste mundo das redes sociais, mesmo quando pretendemos estar contando a verdade sobre nós, redigimos uma ficção.

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Sonhando acordado

Hurin foi um garoto desajustado, filho de hippies, que sofreu bullying durante toda a sua infância. Como mecanismo de fuga, ele desenvolveu o hábito de entregar-se a devaneios. Acompanhe nesta história, as aventuras de Hurin na vida adulta, em que ele crê reviver as encarnações onde fez sucesso profissional e amoroso como Franz Mesmer e Mário Vargas Llosa.

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Hurin foi durante toda sua infância um garoto gordinho, tímido e desajustado, a vítima perfeita do bullying de seus colegas. Desde cedo ele se acostumara a devanear. Fazia isso para escapar à dura realidade do dia a dia. Seus colegas, que preferiam o mundo dos videogames e das séries por video streaming, faziam troça deste garoto esquisito, que parecia viver noutro planeta. No caso dele não eram apenas aparências... Sempre que fechava os olhos, ele se teletransportava para um outro mundo, onde era o garoto mais popular da turma, profundamente invejado pelo seu conhecimento da cultura andina. 

Que garoto se interessaria pela cultura andina? No caso dele, isso não era bem uma questão de interesse, ele se criara ouvindo seus pais recontarem suas aventuras do passado. Os pais de Hurin eram hippies que haviam desistido de perambular pela costa leste do Peru e retornado à cidade natal quando o seu avô paterno morreu e as remessas de dinheiro cessaram. Tinham trocado uma vida de aventuras pelas estradas dos Andes por uma triste rotina de trabalho na empresa familiar. Contudo, ainda passavam horas livres a relembrar as peripécias de sua fase errante: o trekking a Machu Pichu, as conversas à luz de velas com um xamã de Aguas Calientes e as viagens de ônibus lado a lado de cholas vestidas com suas mil saias sobrepostas, que agarradas às suas galinhas e trouxas, não perdiam sua dignidade nem sua altivez. 

A casa onde Hurin se criou mais parecia um museu de cerâmica Mochica. Vasos em forma de tubérculos de onde brotavam membros de homens e de feras, decorados com cenas de sacrifícios ou com criaturas do mundo noturno e úmido haviam sido contrabandeados nas mochilas de seus pais, quando estes retornaram à contragosto ao Brasil e passaram a decorar cada canto da casa. A própria escolha do nome de Hurin era uma referência a esse mundo de baixo, habitado por seres das sombras, mortos e ancestrais. Insatisfeitos com a rotina de sua nova vida, seus pais o conceberam como uma ponte entre dois mundos: entre o mundo espiritual e o real, entre uma mocidade repleta de aventuras e a triste realidade da vida adulta. 

Hurin sonhara durante toda a sua juventude em ser médico, porém seus sonhos não haviam se tornado realidade. A medicina era um curso concorrido e suas notas não tinham sido suficientemente boas para que ele fosse admitido no curso. Acabara tendo de se contentar em ser um fisioterapeuta medíocre, que atendia unicamente pacientes conveniados. 

Entre terapias com luz infravermelha, gelo e ultrassom, ele descobriu a importância da manipulação do campo energético na cura das doenças físicas. Com o passar do tempo, ele decidiu abandonar o emprego na clínica e abrir o seu próprio consultório de terapias alternativas. Mas como os convênios médicos não pagavam este tipo de tratamento, o número de pacientes não era suficiente para manter a sua clínica a pleno vapor. Deste modo, Hurin passara a ter muito tempo livre entre um paciente e outro.

Desde pequeno a mãe de Hurin dizia a ele que “Mente vazia é a oficina do diabo”. Contudo, ao invés de aproveitar seu tempo livre para se aperfeiçoar na sua profissão ou ler um bom livro, sempre que os pacientes escasseavam, ele se trancava em sua sala e, ao som de músicas xamânicas andinas, se punha a bater num tambor de pele de carneiro no compasso das batidas do coração. Dali a pouco, seu corpo tornava-se mais leve e ele via passar diante de seus olhos cenas de suas vidas passadas. Com um movimento suave de seus dedos para a direita ou para a esquerda, ele avançava no tempo ou recuava conforme o desejo do momento. Na maior parte dos dias ele escolhia voltar ao início do séc. XVIII, quando havia encarnado como Franz Anton Mesmer.

Hoje era um desses dias e ele subitamente se viu como médico consagrado e cidadão respeitado pelos seus pares, conhecido por sua terapia inovadora que utilizava a imposição de mãos para curar males físicos. Neste exato momento, ele explicava à uma comissão de cientistas da Sociedade Real de Medicina de Paris e à plateia que pessoas portadoras de habilidades especiais como as dele emanavam uma força mais poderosa que a dos ímãs, denominada magnetismo animal. Esta força podia ser utilizada para redistribuir o fluido magnético do paciente e restaurar o seu equilíbrio.

De pé, ao lado de seu instrumento de trabalho, um tonel de madeira cheio de areia, limalha de ferro e água, onde estavam espetadas várias varetas de metal, Mesmer observava a sua paciente que tocava uma destas varetas com as pontas dos dedos. A mulher sentada à sua frente era Franziska Oesterlin, uma pianista bela e talentosa que sofria de cegueira intermitente e convulsões. Enquanto examinava o rosto dela atentamente, ele começou a esfregar suas mãos antes de aproximá-las da cabeça de Franziska, onde elas pairaram a poucos centímetros acima dos seus cabelos. Após alguns minutos, elas iniciaram um movimento de vai e vem entre sua cabeça e seus ombros, sem tocá-la. Em pouco tempo, Franziska, se sentindo inebriada com o calor que emanava das mãos do doutor Mesmer, enrubesceu e foi presa de espasmos musculares involuntários. Com os olhos semicerrados, ela voltou seu rosto na direção dos raios de sol que penetravam pela clarabóia e então desfaleceu. Todos os que acompanhavam a cena ficaram impressionados com a beleza do rosto daquela mulher que, ao perder a consciência, exibia um esgar de êxtase. 

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Rapidamente Franziska foi cercada por enfermeiros trazendo sais de amônia para despertá-la. Poucos minutos mais tarde, a plateia era levada ao delírio quando, ao se levantar, ela declarou que estava curada. Recostado na maca de seu consultório, Hurin vislumbrava a cena de olhos fechados, vibrando de satisfação. Nisto ele foi despertado do seu devaneio por uma batida na porta. Era dona Maria, uma paciente idosa que frequentava sua clínica com assiduidade. Apesar das inúmeras sessões em que ele utilizara técnicas tradicionais aliadas à manipulação dos fluidos magnéticos, ela permanecia sem apresentar sinais de melhora. Hoje ela vinha em busca de uma consulta extra, pois as dores na coluna e a enxaqueca estavam insuportáveis.

Hurin observou desanimado a senhora à sua frente, prova viva de seu fracasso. Por alguns instantes ele se questionou se essa história de ele ser uma reencarnação de Mesmer teria algum fundamento. Afinal de contas, se o mesmerismo funcionasse, ela já estaria mais do que curada. Pela primeira vez, sentiu-se despido de todas as suas fantasias. Era apenas um homem comum. Talvez não houvesse forças ocultas a dominar, talvez ele não fosse a reencarnação de ninguém. Apenas um homem, apenas um sonho quebrado. Naquele momento, a ilusão finalmente se desfez, deixando-o frente a frente com a única verdade que restava: o magnetismo, afinal, só existia na vontade de quem queria acreditar. E ele, agora, já não tinha certeza de mais nada.

Nisto Hurin escutou a campainha do seu consultório tocar. Ao abrir a porta, uma jovem se apresentou. Era Denise, a sobrinha de dona Maria, que lhe perguntava sorrindo se o tratamento da sua tia já havia terminado. Embevecido pela beleza e simpatia da jovem parada ali à sua frente, ele não soube o que responder e apenas a conduziu até a presença da tia. Enquanto esta revirava a bolsa em busca do cartão de crédito, todos foram surpreendidos pelo toque do celular de sua sobrinha: ‘El condor passa’, a música mais conhecida da cultura andina, invadia todos os cantos do consultório e enchia o coração de Hurin de esperança. Seria isto um sinal do universo de que nem todas as suas crenças eram puras ilusões?

Após elas irem embora, Hurin se jogou novamente em sua poltrona, perdido em devaneios, e automaticamente se pôs a arrastar seus dedos para a esquerda, procurando a encarnação mais recente em que ele fizera sucesso com as mulheres. Em breve ele se via como o conhecido escritor peruano Mario Vargas Llosa, entregando aos amigos o convite para um de seus casamentos, onde, ao lado de seu nome, se via em letras prateadas o nome de Denise. Afinal de contas, talvez o mesmerismo não fosse capaz de curar os doentes, mas era bom ser amado por aquela bela mulher e invejado por todos!

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